Chutando uma bola ou fazendo um amigo, criança quer escola, criança quer abrigo.
Na hora do cansaço ou na hora da preguiça, criança quer abraço, criança quer justiça.
Em qualquer lugar criança quer o quê? criança quer sonhar, criança quer viver.
Agente quer, agente quer, agente quer ser feliz, CRIANÇA É VIDA.
— Toquinho, cantor e compositor

JOÃO SEM MEDO !

Havia una vez um pai que tinha dois filhos, o maior era calmo e prudente, e podia fazer qualquer coisa. Mas o jovem era estúpido e não conseguia aprender nem entender nada, e quando o povo o via passar diziam: Este rapaz dará problemas a seu pai.

Quando se tinha que fazer algo, era sempre o maior que tinha que fazer, mas se o pai o mandava trazer algo quando era tarde ou no meio da noite, e o caminho o conduzia através do cemitério ou algum outro lugar sombrio, reclamava: Ah, não, pai! não irei, me dá pavor, pois tinha medo.

Quando se contavam histórias ao redor do fogo que colocava a carne de galinha pra assar, os ouvintes algumas vezes diziam: Me dá medo!

O rapaz se sentava numa canto e escutava os demais, mas não podia imaginar o que era ter medo: Sempre dizem: "Me dá medo", "Me causa pavor", pensava. Essa deve ser uma habilidade que não compreendo.

Ocorreu que o pai lhe disse um dia: Escuta com atenção, estás ficando grande e forte, e deves aprender algo que te permita ganhar o pão.

Bem, pai, respondeu o jovem. A verdade é que há algo que quero aprender, se é que se pode ensinar. Gostaria de aprender a ter medo, não entendo de todo o que é isso.

O irmão maior sorriu ao escutar aquilo e pensou: "Deus santo, que cabeça de minhoca é esse meu irmão. Nunca servirá para nada. O pai suspirou e respondeu: Logo aprenderás a ter medo, mas não se vive disso.

Pouco depois o sacristão foi à casa de João, em visita, e o pai lhe contou que seu filho menor estava tão atrasado em qualquer coisa que não sabia nem aprendia nada.

Veja só disse o pai: Quando perguntei como ia ganhar a vida, me disse que queria aprender a ter medo. Se isso é tudo, respondeu o sacristão: Pode aprender comigo. Mande-o a mim.

O pai estava contente de enviar seu filho com o sacristão porque pensava que aquilo serviria para endireitar João.

Então o sacristão tomou ao rapaz sob sua guarda em sua casa e tinha que tocar o sino da igreja. Um dia o sacristão acordou à meia-noite, e o fez levantar para ir à torre da igreja tocar o sino.

"Logo aprenderás o que é ter medo" pensava o sacristão. E, sem que João se desse conta, levantou-se e subiu na torre. Quando o rapaz estava no alto da torre, e foi dar a volta para pegar a corda do sino e viu uma figura branca de pé, nas escadas do outro lado do poço da torre.

Quem está aí? Gritou o rapaz, mas a figura não respondeu nem se moveu.  Responde, gritou o rapaz, ou saia. Não perdeste nada aqui.

O sacristão, sem dúvida, continuou de pé, imóvel, para que João pensasse ser um fantasma. O rapaz gritou a segunda vez: Que fazes aqui?  Diz o que queres ou te atirarei pelas escadas.

O sacristão pensou que era onda de João e continuou paradão, quieto, como uma estátua. Então o rapaz avisou a terceira vez e como não serviu de nada, se jogou contra ele e empurrou o fantasma escada abaixo.

O "fantasma" rodou dez degraus e caiu num canto. Então João fez soar o sino e se foi para casa e, sem dizer nada, voltou a dormir.

A esposa do sacristão ficou esperando seu marido um bom tempo, mas ele não voltou. Ela ficou inquieta e acordou João. Perguntou: Sabes onde está meu marido? Subiu na torre antes de ti.

Não sei, respondeu o rapaz. Mas alguém estava de pé no outro lado do poço da torre, e como não me respondia nem se ia, achei que era um ladrão e o joguei das escadas.

A mulher saiu correndo e encontrou seu marido queixando-se no canto, um uma perna machucada. Depois de ajudá-lo, ela, chorando, foi ver o pai do rapaz.

Teu filho, gritava ela, causou um desastre. Jogou meu marido pelas escadas e quebrou-lhe a perna. Leva esse inútil de nossa casa.

O pai estava aterrado e correu ao rapaz pra saber o que houve:  Que conversa foi essa? Pai, respondeu, escuta,  sou inocente. Ele estava ali, de pé, no meio da noite, como se fosse fazer algo mau. Não sabia quem era e pedi que falasse por três vezes.

Ah! disse o pai, só me trazes desgosto. Sai da minha frente, não quero te ver mais.

Sim, pai, como queiras, mas espera que seja dia. Então partirei para aprender o que é ter medo, e então aprenderei um ofício que me permita me sustentar.

Aprende o que quiseres, disse o pai e tanto faz. Aqui tens 50 moedas para ti.

Pega e vai pelo mundo, mas não digas de onde vens e nem quem é teu pai. Tenho razões para me envergonhar de ti.

Sim, pai, farei isso. Se não for mais nada que isso, posso lembrar fácil. Assim que amanheceu, o rapaz colocou as 50 moedas no bolso e se foi pela estrada principal, dizendo continuamente:  Se pudesse ter medo, se soubesse o que é temer...

Um homem se aproximou e ouviu o monólogo de João e, quando haviam caminhado um pouco mais longe, onde se viam os patíbulos, o homem disse: Olha, ali está a árvore onde sete homens se casaram com a filha do açougueiro, e agora estão aprendendo a voar. Sente-se perto da árvore e espera o anoitecer, então aprenderás a ter medo.

Se isso é o que tenho a fazer, é fácil, disse o jovem. Mas se aprendo a ter medo tão rápido , te darei minhas 50 moedas. Volta amanhã de manhã bem cedo.

Então o homem se foi e ele sentou ao lado da forca, e esperou até a noite. Como tinha frio, acendeu um fogo. À meia-noite, o vento soprava tão forte que, apesar do fogo, não conseguia se esquentar e como o vento fazia chocarem-se os enforcados entre si, e se balançavam, ele pensou: "Eu aqui, junto ao fogo, já sinto frio, imagino quanto devem estar sofrendo esses que estão aí em cima."

Como davam pena, levantou a escada, subiu e um a um os foi desatando e baixando. Então avivou o fogo e os dispôs ao redor para que se esquentassem.

Mas ficaram sentados sem se mover e o fogo prendeu em suas roupas. Então o rapaz disse: Tenham cuidado ou os subirei outra vez.

Os enforcados, é lógico, não escutaram e permaneceram em silêncio, deixando seus farrapos queimarem.

O jovem se zangou e disse:  Se não querem ter cuidado, não posso ajudá-los e não me queimarei com vocês. E colocou-os de volta no lugar. Depois se sentou junto ao fogo e ficou dormindo. 
Na manhã seguinte o homem veio para pegar suas 50 moedas, lhe disse: Bem, agora sabes o que é ter medo.

Não, disse o rapaz. Como querias se os tipos lá de cima não abriram a boca? e são tão idiotas que deixam que os poucos e velhos farrapos que vestiam se queimem.

O homem, vendo que esse dia não ia conseguir as 50 moedas, se ajoelhou dizendo: Nunca encontrei alguém assim.

O jovem continuou seu rumo e outra vez começou a falar sozinho: Se pudesse ter medo...

Um carreteiro que andava por ali escutou e perguntou: Quem és? Não sei, respondeu o jovem.

Então o carreteiro perguntou: De onde és?  Não sei, respondeu o rapaz.

Quem é tu pai? Insistiu. Não posso dizer,  respondeu o rapaz.

Que é isso que estás sempre murmurando? Perguntou o carreteiro.  Ah, respondeu o jovem que gostaria de aprender ter medo, mas nada me ensina.

Deixa de dizer bobagens, disse o carreteiro. Vamos, vem comigo, e encontrarei um lugar para ti.

O jovem foi com o carreteiro e, ao anoitecer, chegaram a uma pousada onde iriam passar a noite. Na entrada do salão o jovem disse, bem alto: Se pudesse ter medo...

O pousadeiro escutou e rindo disse: Se isso é o que queres, saiba que aqui encontras uma boa oportunidade. Cala-te, disse a dona da pousada que muitos intrometidos já perderam sua vida, seria uma lástima se olhos tão bonitos não voltassem a ver a luz do dia.

Mas o rapaz disse: Não importa o tão difícil que seja, aprenderei, é por isso que tenho viajado tão longe.

E não deixou em paz o dono da pensão até que ele contou que não longe dali havia um castelo encantando onde qualquer um poderia aprender com facilidade o que é ter medo se pudesse permanecer ali durante três noites.

O rei havia prometido que qualquer um que conseguisse teria a mão de sua filha, que era a mulher mais bela sobre a qual havia brilhado o Sol.

Por outro lado, no castelo há um grande tesouro, guardado por malvados espíritos. Esse tesouro seria libertado e fazia rico ao libertador. Ainda que alguns tivessem tentado, nenhum havia saído.

Na manhã seguinte o jovem foi a ver o rei e disse: Se me permitir, desejaria passar 3 noites no castelo encantado.

O rei observou-o e como o jovem o agradava, disse: Podes pedir três coisas para levar contigo ao castelo, mas devem ser três objetos inanimados.

Então o rapaz disse: Pois quero um fogo, uma faca e uma tábua para cortar.

O rei fez que levassem essas coisas ao castelo durante o dia. Quando se aproximava a noite, o jovem foi ao castelo e acendeu um fogo brilhante numa das salas, pôs a tábua e o cutelo ao seu lado e se sentou junto ao torno e disse: Se pudesse ter medo, mas vejo que não aprenderei aqui.

Era meia-noite e estava atiçando o fogo, e enquanto soprava, algo gritou de repente de um canto:  Miau, miau. Temos frio. 

Tontos, respondeu o jovem. Por que se queixam, se têm frio venham sentar-se junto ao fogo. Quando disse isto 2 enormes gatos negros saíram dando um tremendo salto e se sentaram um de cada lado de João. Os gatos o olhavam com selvageria.

Aos poucos, quando se aqueceram, disseram:  Camarada, joguemos cartas.  Por que não?, disse o rapaz.  Mas primeiro ensinem-me.

Os gatos mostraram suas garras. Oh!, disse ele tens unhas muitos compridas. Esperem que as corto num segundo. Então os pegou pelo pescoço, os colocou na tábua de cortas e lhes atou as patas rapidamente.

Depois de ver os dedos, disse já me passou a vontade de jogar cartas. Logo os matou e os atirou na água. Mas quando se havia desfeito deles e ia sentarse junto ao fogo, de cada canto saíram cães e gatos negros, com correntes, e continuaram saindo até que não havia mais para onde se mover.

Gritavam horrivelmente, esparramaram o fogo e apagaram-no. João observou tranqüilamente durante uns instantes, mas quando estavam passando da conta, pegou a faca e gritou:  Fora daqui, sacanas.

E começou a esfaqueá-los. Alguns fugiram, enquanto que os que matou, jogou ao fogo. Quando terminou não podia manter os olhos abertos por causa do sono.

Olhou em volta e viu uma cama enorme. Justo o que precisava, disse e se meteu nela. Quando estava para fechar os olhos a cama começou a se mover por si mesma e o levou por todo castelo. Isto está bom, disse. Mas vá mais rápido. 

Então a cama rodou como se seis cavalos a puxassem, acima e abaixo, pelos umbrais e escadarias. Mas de repente girou sobre si mesma e caiu sobre ele como uma montanha. 

João saiu debaixo da cama dizendo: Hoje em dia deixam qualquer um dirigir... E se foi para junto do fogo, onde dormiu até a manhã seguinte.

Na manhã seguinte o rei foi vê-lo, e ao encontrá-lo atirado ao chão, pensou que os espíritos o haviam matado. Disse: Depois de tudo é uma pena, um homem tão corajoso...

O jovem o escutou, se levantou, e disse: Não é para tanto. O rei estava perplexo, mas muito feliz, e perguntou como tinha sido.
A verdade é que bastante bem, disse que Já tinha passado uma noite, as outras serão do mesmo jeito.

Foi ver o dono da pousada que, olhando com olhos do tamanho de pratos, disse: Nunca pensei que voltaria a te ver com vida! Afinal, aprendeste a ter medo?

Não, respondeu. É inútil. Se alguém me pudesse explicar... A segunda noite voltou ao velho castelo, se sentou junto ao fogo e uma vez mais começou a cantilena: Se pudesse ter medo... se pudesse ter medo...

À meia-noite se escutou ao redor um grande barulho que parecia que o castelo vinha abaixo. No início se escutava baixinho, mas foi crescendo mais e mais. De repente, tudo ficou em silêncio e, de repente, com um grito, a metade de um homem caiu diante de João.

Ei, gritou o jovem. Falta-te a metade! Então o barulho começou de novo, se escutaram rugidos e gemidos e a outra metade caiu também. Tranqüilo,  disse o jovem. Vou avivar o fogo.

Quando havia terminado e olhou ao redor, as duas metades haviam se unido e um homem espantoso estava sentado no lugar de João. Isso não entrava no trato, disse ele. Esse banco é meu.
O homem tentou empurrá-lo, mas o jovem não o permitiu, então o empurrou com todas as forças e se sentou em seu lugar.

Mais homens caíram do mezanino, um atrás do outro. Recolheram nove pernas humanas e duas caveiras e começaram a jogar com elas.

João também quis jogar: Escuta, posso jogar? Se tens dinheiro, sim, responderam eles. Tenho, respondeu.

Mas essas bolas não são redondas o bastante. Pegou as caveiras, colocou-as no torno e as arredondou. Agora está muito melhor. 

Hurra,  disseram os homens. Agora nos divertiremos. Jogou com eles e perdeu algum dinheiro, mas guando deram as doze, todos desapareceram. Ele então se encostou e dormiu.

Na manhã seguinte o rei foi ver como estava: E aí, como foi desta vez? Perguntou. Fiquei jogando bola, respondeu. E perdi um par de moedas.

Então não tiveste medo? - perguntou o rei. Quê? Disse, passei muitíssimo bem. O que realmente não aconteceu foi ter medo.

Na terceira noite sentou-se em seu banco e entristecido, disse: Se pudesse ter medo... Quando ficou tarde, seis homens muito altos entraram trazendo consigo um caixão.

E disseram ao jovem: Hahahaha. é meu primo, que morreu há dois dias. Puseram o caixão no chão, abriram a tampa e se viu um cadáver caído em seu interior. O jovem tocou-o no rosto que estava frio como o gelo. 

Espera, disse. Te aquecerei um pouco.  Se foi ao fogo, esquentou as mãos e as colocou na cara do defunto, mas esta continuou fria. Tirou-o do ataúde, sentou-o junto ao fogo e o apoiou em seu peito mexendo seus braços para que o sangue circulasse de novo.

Como isso também não funcionava, pensou: "Quando duas pessoas se metem na cama, se dão calor mutuamente." Assim, levou-o para a cama e deitou junto dele. Logo o cadáver começou a se aquecer e a mover-se.

O jovem disse: Vês primo como te esquentei? O cadáver se levantou e disse: Te estrangularei.  Como? Disse o jovem,  é  assim que me agradeces?

Pois voltas pro caixão agora mesmo. E o pegou pelo pescoço, jogou-o no caixão e fechou a tampa. Então os 6 homens vieram e levaram o caixão.

Não consigo aprender a ter medo e disse e nunca em minha vida aprenderei. Um homem mais alto que os demais entrou e tinha um aspecto terrível. Era velho e tinha uma larga barba branca.

Pobre diabo, gritou o velho e logo saberás o que é ter medo, porque vais morrer. Não tão depressa, respondeu rapaz. Que eu terei algo a dizer sobre isso.

Pronto acabarei contigo, disse o demônio. Pára com essas bobagens que sou tão forte como tu o até mais.

Vamos testar, disse o velho. Se és mais forte, te deixo ir.  Vem e comprovaremos. Levou-o através de paisagens escuras, até uma forja; ali o velho pegou uma enorme acha e de um talho partiu em dois.

Posso melhorar,  disse o rapaz. Pegou também uma acha e partiu-a de um talho e, aproveitou enquanto partia a acha, talhou também a barba do velho. 

Te venci, disse o jovem. Agora vais morrer e com uma barra de ferro golpeou o velho até que este começou a chorar e a pedir que parasse, que se parasse lhe daria grandes riquezas.

O jovem soltou a barra de ferro e o deixou livre. O velho o levou de novo ao castelo e num sótão mostrou-lhe três cofres cheios de ouro.

De tudo isto, disse o velho: Um é para os pobres, outro para o rei e o terceiro para ti. Então deram as doze e o espírito desapareceu e o jovem ficou no escuro.

Acho que posso encontrar a saída, disse o jovem. Tateando conseguiu encontrar o caminho até a saída onde estava o fogo e dormiu junto dele.

Na manhã seguinte o rei foi vê-lo e disse: Já deves ter aprendido o que é ter medo. Não, disse. Vi um morto e um homem com barba me deu um montão de dinheiro, mas nada me fez saber o que é ter medo.

Então, disse o rei: Salvaste o castelo e te casarás com minha filha. Tudo isso é ótimo, disse o jovem, mas sigo sem saber o que é ter medo.

Repartiu-se o ouro e celebrou a boda. Mas por muito que quisesse a sua esposa e por muito feliz que fosse o jovem rei sempre dizia: Se pudesse ter medo... se pudesse...

Isso acabou por aborrecer sua esposa: Encontrarei a cura, aprenderá a ter medo. Foi ao rio que atravessava o jardim e trouxe um cubo cheio de lambaris. 

À noite, quando João estava dormindo, sua esposa levantou as cobertas e jogou sobre ele a água fria com os lambaris, de maneira que os peixinhos começassem a saltar sobre ele, que despertou e gritou: Que susto! Agora sei o que é me assustar.

João Sem Medo — Irmãos Grimm
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